sábado, 3 de dezembro de 2011

Li Wing Kay - Lenda Viva do Kung Fu: 40 Anos de Brasil



Agradeço a oportunidade de perpetuar minha mais alta estima pela pessoa que me mostrou o caminho do Kuoshu. Que eu sempre irei chamar de Mestre Li Wing Kay. Muito obrigado por todos os anos sob sua tutela, Shifu.

Por Flávio Perez

Lenda Viva do Kung Fu: 40 anos de Grão-Mestre Li no Brasil

Pioneiro do profissionalismo das artes marciais, Li Wing Kay aposta na união entre Brasil e China para liderar não só a economia mundial como o esporte.

Li Wing Kay chegou no país em maio de 1970 e desde então lidera o profissionalismo no Kung Fu. Oriundo de Hong Kong, na China, o atual presidente da Confederação Brasileira de Wushu e Kuoshu Chinês (CBWKC) começou a treinar aos sete anos de idade e coleciona medalhas, alunos, honrarias, títulos e principalmente, o respeito.

Para o grão-mestre, o segredo de ensinar artes marciais é mostrar aos discípulos que um dia eles poderão conquistar as conquistas do seu sifu (nome que se dá ao professor em chinês). O estilo Garra de Águia não é a única habilidade do grão-mestre. A formação qualificada na China e a persistência em aprender de tudo um pouco levaram Li a dominar artes como Karate, Taekwondo e Judo. Evans, como é conhecido na antiga colônia britânica chinesa, acredita que o Brasil aos poucos deixa de ser a nação do futuro para se consolidar como referência no mundo globalizado. Potência? Li não duvida que, em pouco tempo, o país do futebol será força esportiva assim como a China, líder do quadro geral de medalha nos Jogos de Pequim 2008. Com uma garrafa de chá nas mãos e um sorriso inigualável no rosto, o grão-mestre falou um pouco dos 40 anos em solo brasileiro e seus ensinamentos da arte milenar chinesa.

A chegada: Samba ou Bang Bang?

A primeira impressão foi susto: "Estou no Velho Oeste, nos filmes de bang bang". Há quarenta anos, mais precisamente em junho de 1970, o grão-mestre Li Wing Kay chegava ao Brasil depois de atravessar 18 mil quilômetros de Hong Kong a São Paulo. Antes, apenas uma conexão de seis meses nos Estados Unidos. A passagem por terras brasileiras era pra ser uma visita aos pais, mas se tornou sua residência, sua pátria tropical. Nada era igual à cidade asiática administrada pela Inglaterra. A começar pela densidade demográfica. Como dizia a música exaltação da seleção de futebol em 1970 - "éramos 90 milhões em ação". A China batia na casa de um bilhão de pessoas e o governo adotava regras para controlar a natalidade. Acostumado a ver muita gente ao seu redor, ele de cara observou que o Brasil tinha muito para crescer. "Esse é o país do futuro".

A segunda impressão foi de festa. A seleção brasileira disputava a Copa do Mundo de 1970, no México. Os craques Rivelino, Jairzinho, Tostão e Pelé enchiam o torcedor de alegria no país administrado pelos militares. Era a terceira conquista do Brasil na modalidade mais praticada. Para um jovem de 20 anos era a senha do sucesso. A idéia de mudar de vida tinha um propósito: terminar os estudos em educação física, iniciados na terra natal. Hong Kong não oferecia esse know how. Mesmo assim, ele recebeu o diploma de professor de técnicas desportivas e a especialização - como não poderia ser diferente - foi realizada em Artes Marciais.

O grão-mestre Li Wing Kay ganhou licença da Associação Lau Fat Moun para representar o estilo Garra de Águia fora do país mais populoso do mundo. E antes de chegar e se tornar referência no Kung Fu da América, Li aprendeu e lecionou várias artes na China. Tudo começou com o tio To que levava o pequeno Li, com apenas sete anos, para acompanhar os treinos. "Faixa apenas para segurar a calça", dizia o tio. Na China, não havia profissionalismo no Kung Fu e nas demais modalidades. Os ensinamentos eram passados de pai pra filho e a tradição, na real essência da palavra falava mais alto. O desenvolvimento de Li foi gradativo em várias frentes. "Eu pude aproveitar os ensinamentos orientais em lutas e estilos como Karate, Judo, Taekwondo, Shuai Chiao, Louva a Deus, Hung Gar, Tai Chi Chuan e Wu Shu. O potencial chinês é enorme, já que todo mundo pratica."

Mas desbravar o continente não era uma tarefa estranha à família chinesa. Os pais de Li já moravam no Brasil e tinham uma fábrica de mineração. O irmão mais velho ficou em Hong Kong e o mais novo ainda estudava. Coube a ele a tarefa e a oportunidade de atravessar o mundo, repetindo assim a sina dos pais. A retaguarda familiar não impediu o futuro do mestre de conhecer o conceituado ensino de educação física norte-americano. Li morou em São Francisco pouco mais de seis meses, mas a adaptação na Califórnia não aconteceu e logo ele desembarcava em Viracopos. "Nos Estados Unidos, os imigrantes e os negros sofrem com o racismo. As diferenças são pouco toleradas. diferentemente do Brasil onde há calor humano e respeito e oportunidades às etnias", alertou Li.

Pioneirismo

Em 1987, por exigência do governo da China, os representantes do Kung Fu no Brasil fundaram a Confederação. O pano de fundo da estratégia de Pequim era popularizar ainda mais a arte marcial e colocar a modalidade no calendário olímpico. Só depois da interferência consular que o processo andou. "Os mestres não queriam se unir ou entrar em politicagem formando uma associação com regras e padrões definidos. Tinham medo de passar vergonha, de perder alguma coisa. Era melhor, segundo a maioria, ficar a portas fechadas, sem interferências na sua filosofia", recorda Li.

Entretanto, nem Federação de Kung Fu existia na China. Tal organização apareceu apenas na década seguinte, depois das reformas aplicadas no final do governo maoísta. A maior aproximação com os Estados Unidos trouxe alguns pontos distintos do habitual e abriu o mercado local para o ocidente. O líder Deng Xiaoping classificou a estratégia que denominou Economia Socialista de Mercado. No Brasil, a organização da sociedade civil em grupos, como federações ou sindicatos, ainda era um processo lento e burocrático. A tarefa pioneira de dar um padrão ao Kung Fu coube ao grão-mestre e seus discípulos, mas demorou um bocado por causa das resistências. A semente foi plantada já na década de setenta. Li escolheu a Escola Panamericana de Arte para concluir o ensino superior em propaganda. A instituição era a única em São Paulo que lecionava em inglês.

A fundamentação teórica serviu de base para a administração da Confederação nos dias de hoje. Em 1980, contra a vontade de muitos, ele organizou o primeiro Campeonato Brasileiro de Kung Fu, em Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Era o início das atividades de Li relacionadas ao mundo das artes marciais. O grão-mestre teve participação decisiva na fundação das federações de Kung Fu de São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Rio de Janeiro, Goiás e Amazonas. Para reciclar os conhecimentos, ele volta constantemente à China. Prova disso é que Li faz parte da primeira turma de Árbitros Internacionais de Wu Shu. Outra inovação veio recentemente. Em 2005, Li trouxe ao Brasil o curso de medicina oriental chinesa "Ventosa de Bambu" e o de Chi Kung ministrado pelo Grão-mestre Chang Fu Chen.

Primeiro Emprego a Gente Nunca Esquece

O Kung Fu fervia no Brasil dos anos 70. Filmes e mais filmes de lutas orientais ganhavam às telas. As produções de Hollywood marcavam a era de ouro do entretenimento. David Corradine, com a série de Kung Fu, e Bruce Lee eram os campeões de bilheterias. Mas, a demanda superou a qualidade. Faltava mão de obra no País. Atento a isso, o grão-mestre Li já lecionava na Associação de Chineses em São Paulo e dava passos largos em busca da realização profissional em solo brasileiro. "Tive chance de arrumar emprego na área de publicidade, mas preferi não tirar o emprego de uma pessoa que precisava. Eu queria ser professor de artes marciais e estabeleci isso como meta."

Quatro anos foram suficientes para Li abrir a primeira academia. O estabelecimento batizado de Associação Evans Li de Artes Marciais ficava em Perdizes, zona Oeste de São Paulo. Localização perfeita para iniciar o caminho próprio. Os alunos também não demoraram a aparecer. Nesses quarenta anos, o Grão-mestre formou mais de 10 mil atletas. Um deles ganhou destaque nos anos oitenta. Em 1989, em Pequim, James Venturini foi o primeiro campeão mundial de Kung Fu de combate, na categoria até 80 quilos. Hoje, o discípulo do estilo Garra de Águia vive no Espírito Santo. O presidente da Confederação Brasileira de Kung Fu tem a premissa de que o conhecimento da cultura milenar chinesa precisa ser difundida no ocidente. É com essa filosofia que ele administrou todas as unidades com o intuito de ensinar e formar campeões no esporte e na vida. "A arte marcial é cultura. Primeiro é a beleza - a arte propriamente dita - em segundo, vem a defesa pessoal, terceiro é a importância para a saúde, quarto, a pesquisa para o desenvolvimento, e quinto, a administração".

Nesse último quesito, Li se destaca no mercado já que une todas as qualidades descritas por formação profissional. "Tradicional não é ser atrasado, apesar do conceito errado aplicado pelos outros. Os jovens não podem desenvolver as mesmas técnicas dos antepassados. O mundo mudou e a arte também, apesar de conservar sua essência milenar. O segredo é usar os próprios conhecimentos para evoluir e aperfeiçoá-los. A cópia não serve, é um erro. Eu ensino isso para os meus alunos. Um dia, com os conhecimentos adquiridos, eles precisam ser melhores do que o mestre", acrescenta Li.


A evolução nos treinamentos é notória e, por isso, as aulas são mais práticas e mais curtas. Nos anos setenta, por exemplo, o período de aula era superior a três horas. Agora, os trabalhos duram uma hora no máximo.

Arte Marcial no Brasil

Apesar de ter formado atletas e professores nesses quarenta anos de Brasil, mestre Li está preocupado com a falta de critérios no setor. "É muito fácil montar uma academia por aqui". O País ainda não tem uma lei que regulamenta as artes marciais, mesmo com a organização de algumas entidades. É comum ver praticantes deturpando os ensinamentos. O grão-mestre vai mais além. "A arte marcial de hoje é mastigada para o aluno, ou seja, ele faz o movimento e nem sabe por que fez aquilo. Isso é culpa de alguns professores que não tem o dom de ensinar e sim de lutar apenas. Tem faixa-preta que não sabe dar um soco, não tem técnica," pondera o presidente da Confederação.

Li reconhece que as artes marciais vivem de moda, como foi a do Kung Fu nos anos setenta. Passou a fase da capoeira e hoje o MMA - Mixed Martial Arts - concentra as atenções da maioria dos jovens pelo apelo da mídia com as transmissões das lutas.

O nome Kung Fu pode ser traduzido como trabalho duro. É essa uma das filosofias do Grão-mestre na administração da arte milenar chinesa.


Vovô Li

O grão-mestre se orgulha de dizer que todos os alunos são considerados filhos dele. Dedicação e atenção para com todos os que passaram pelas academias dele e pelos discípulos sifus que hoje transmitem os conhecimentos à nova geração de praticantes de Kung Fu. Li tem três filhos (Paulo, Winne e Linna) e um neto (Ighor). O mestre é casado com a brasileira Aparecida Li, filha de japoneses. Nos momentos de folga, Li procura dedicar o tempo à leitura. Fã da cultura milenar chinesa, o presidente da Confederação Brasileira de Kung Fu já tem no currículo quatro livros publicados. Outra paixão de Li é a música. O violão era o hobby do passado e hoje os aparelhos de karaokê divertem o mestre. "Gosto de cantar. Só não toco mais violão porque meus dedos estão duros", brinca Li.


Figura representativa entre os mais de 200 mil chineses no Brasil, Li ensina aos alunos e para os próprios filhos que a vida é como um esporte. "É preciso saber reconhecer as derrotas, é preciso saber perder. O esporte é momento, sorte e treinamento. Você precisa fazer o seu melhor. Muita gente fica nervosa e triste quando algo dá errado, mas o maior adversário de você é você mesmo. O amanhã sempre será melhor do que hoje", conclui o grão-mestre.


"É preciso saber reconhecer as derrotas, é preciso saber perder. O esporte é momento, sorte e treinamento. Você precisa fazer o seu melhor. Muita gente fica nervosa e triste quando algo dá errado, mas seu maior adversário é você mesmo. O amanhã sempre será melhor do que hoje."

Li Wing Kay




obs: Texto originalmente publicado na Revista do XVI Campeonato de Kung Fu Brasileiro - 19 de setembro de 2010 e site kuoshubr.blogspot.com